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Um departamento de Marketing atento aos desejos do consumidor é só parte do segredo dos grandes cases que acompanhamos e das grandes empresas que admiramos. A inovação precisa estar no coração do negócio e, no caso das empresas de Bens de Consumo, esse coração é o P&D. PMs e PMMs precisam da parceria intensa de Pesquisadores e Cientistas dispostos a encarar os obstáculos que projetos inovadores enfrentam diariamente.
A indústria cosmética é uma das mais dinâmicas e que requer atualização constante. Movimenta cerca de US$30 Bilhões por ano somente no Brasil que já é o 4º maior mercado no mundo.
Além de todas as novidades que o avanço tecnológico permite trazer para o consumidor, é necessário entender o que ele quer. E quando o assunto é beleza, ele quer muito.
Muitas vezes as soluções “milagrosas” buscadas em cosméticos cruzam a barreira entre o que um cosmético pode oferecer e o que só pode ser solucionado pela Indústria Farmacêutica. Existe uma série de regulamentações para as duas indústrias. Estar nesse meio de campo não é tarefa fácil. Essa missão acaba ficando com os farmacêuticos e químicos dos P&Ds.
Para entender outras realidades ou ir além dos departamentos de Marketing, o PRD MKT começa uma nova sessão no blog com entrevistas com profissionais tanto de Marketing quanto de áreas que constroem junto com os PMs e PMMs o futuro de grandes empresas.
Para inaugurar o formato, conversamos com Ruandro Knapik , atualmente Cientista Sênior na Nestlé Skin Health na Suíça. Ruandro começou sua carreira numa das maiores empresas do segmento no Brasil, o Grupo Boticário. Também já passou pela Johnson & Johnson e pela Oriflame Cosmetics na Irlanda.
Desenvolver produtos para públicos tão diferentes requer muito mais que conhecimento técnico. A sinergia entre o Departamento de Marketing e os Laboratórios é o que garante produtos inovadores nas prateleiras.
Falamos sobre esse e outros desafios em nossa conversa:
PRDMKTBR – Que tipos de produto você desenvolve?
Ruandro – Eu sou farmacêutico e formulador de produtos cosméticos. Desenvolvo (formulo) produtos de uso facial e corporal como antiaging, protetor solar, hidratantes, tônicos faciais, sérums, etc.
P – Qual é a relação da sua área com o departamento de marketing?
R – É uma relação íntima e direta. Existem dois grandes momentos, eu diria:
O primeiro é na construção de conceitos (pré-projeto) onde os inputs da área técnica vão ajudar a dar o “shape” da estratégia final. Como trabalho com produtos de alta complexidade, com muito background técnico, essa fase é fundamental para esclarecer todas as oportunidades técnicas de um conceito, para que o time possa desdobrar a estratégia da melhor forma.
A segunda parte é o PDP (Projeto de Desenvolvimento de Produto) ou NPD (New Product Development) em si, ou seja, quando o projeto é aberto com cronogramas sob gestão de um escritório de projetos (PMO). Nessa hora a integração é no dia a dia do projeto, principalmente na construção dos briefings onde as entregas e claims são detalhados, priorizados, planejados e custeados. E lógico, o momento mais mágico do meu trabalho, que é o momento de apresentar as submissões de protótipos para o time de marketing e depois para os consumer studies para verificar a aceitabilidade das novas formulações nos mercados (tudo isso antes dos grandes testes de compliance – segurança e eficácia).
Por fim, ainda em NPD quando todas as fórmulas estão testadas e validadas, antes do lançamento é feita uma grande entrega relacionada a finalização de claims, comunicação, interpretação de testes em verbatins acessíveis ao consumidor e traçar novas oportunidades para projetos e conceitos futuros.
Além disso, em caráter de troubleshooting, há a interação para auxiliar a responder questionamentos de consumidores após o lançamento ou ainda com RP para ajudar a promover os produtos com endosso técnico (que eu também gosto bastante pela exposição e por ouvir de outra forma o mercado falando sobre o que há menos de um ano atrás estava dentro do meu béquer).
P – Para quantos países (e quais) você já desenvolveu algum produto?
R – Mais ou menos 90. Como trabalhei e trabalho em empresas globais, os projetos são fácilmente cascateados. Geralmente existem mercados-alvo para direcionar o desenvolvimento e depois, com o produto pronto, outros mercados apontam o interesse e acontece o deployment. Há também projetos que nascem dedicados para países e necessidades muito específicas dos consumidores e do negócio. Destacaria minha maior interação com: Brasil, México, Rússia, China, Mongólia, Indonésia, Índia, USA, Hong Kong, Vietnam e sudoeste asiático, Leste Europeu (Polônia, Moldávia), Turquia, Egito, Marrocos e Escandinávia.
P – Quais as principais diferenças em formular um produto para brasileiros e para o resto do mundo?
R – Essa é fácil. Em skincare/ facecare no Brasil existem três grandes queixas: pele oleosa, pele oleosa e pele oleosa (rs). O mix de etnia e as condições climáticas (calor e umidade) são ideais para desenvolver pele oleosa. Então, desenvolver produto para rosto no Brasil se resume sempre a grande preocupação em texturas leves, líquidas, oil free, toque seco, mate ou qualquer outro claim que traduz a mesma coisa. No resto do mundo é diferente. Lembro do primeiro projeto para Rússia e Polônia onde o que se esperava de textura era algo que jamais teria sucesso no Brasil, e eu tive o desafio de re-aprender a formular com manteigas, gorduras – o que eu já tinha removido do meu leque de matérias primas há muito tempo.
No universo da comunição, países com nível de educação mais alto não se contentam com informações como “contém extrato de x”, mas sim com uma explicação mais profunda do porque aquele ingrediente está ali e o que ele está fazendo, como foi testado, etc. Isso nivela por cima a entrega técnica de comunicação, o que no Brasil infelizmente está aquém.
Vários outros exemplos, como expectativa de FPS (fator de proteção solar) por países, onde escandinavos são felizes com FPS 10 e isso, no Brasil, não é nem considerado mais.
P – E quais são os principais desafios ao desenvolver um produto único que vai ser usado no mundo todo? Até onde é possível chegar com a padronização?
R – Para mim o principal desafio é regulatório. Uma fórmula de filtro solar para os EUA é quase que exclusiva para lá – a saber, os EUA não atualizam sua legislação de filtros solares há anos e muitos filtros europeus, modernos em textura e proteção ainda não são liberados lá. Caso parecido é com a China, que possui uma lista de ingredientes que podem ser utilizados e fabricados no país (parte do protecionismo local). Grandes inovações e novos ingredientes levam anos para entrar nessa lista, o que impede fórmulas globais de entrarem lá.
Há também questões regulatórias relacionadas a certificações religiosas como a Halal, o que limita muito o desenvolvimento.
Somado a tudo isso, existem os PR issues, ou limitações dos mercados. São “boatos” que ganham força e acabam direcionando as formulações . Hoje temos alguns como a paranóia do momento dos “free from” principalmente na Europa ou os filtros solares que destroem corais na Austrália e Hawaii, ou ainda os mitos em volta dos parabenos, testes em animais, fórmula vegetal, proteção contra a luz infravermelha. Muitas vezes são estudos duvidosos que ganham notoriedade ou interpretações errôneas de conceitos técnicos. Mas, no mainstream viram verdades mesmo sem fundamento científico e temos que nos adaptar a essa demanda do consumidor.
Se o estrategista de Marketing quer padronizar a fórmula para ter um alto volume e ganhos em margem, com certeza vai ter que abrir mão de atributos técnicos e de conceitos para conseguir.
P – Qual foi o produto que mais te tirou da zona de conforto? Qual projeto você precisou se dedicar e entender de fato uma nova cultura, novas formas de uso que você não estava acostumado?
R – Exceto os do Brasil, que costumo dizer que foram os mais audaciosos da minha carreira, em vários sentidos, citaria na carreira internacional um projeto com a Rússia para desenvolver produtos para pele vermelha e sensível. Tive que entender os hábitos da consumidora russa que vive e trabalha a menos de 0 grau na maior parte do ano. Eu testava em mim e pensava, não vai dar certo – e as respostas dos testes com consumidores eram maravilhosas. Foi um grande lançamento.
P – Quais as principais mudanças de mindset você teve que fazer ao trabalhar fora do Brasil? Quais as diferenças que você vê no ambiente corporativo brasileiro e europeu? Existe uma boa prática comum na Europa que você não vê no Brasil (e o oposto também)?
R – O que mais me impressionou na Europa comparado com o Brasil (sem juízo de valor) é o silêncio. Escritórios e laboratórios silenciosos, onde você escuta o cooler do seu computador. As falas são para as reuniões e só.
O respeito ao tempo (clichê talvez) onde não existem atrasos, há a responsabilidade com o que foi acordado e com a agenda. A tranquilidade em dizer não, e não enrolar para dar um feedback negativo sobre um projeto. O balanço entre qualidade de vida e trabalho. A ausência de grandes esforços de RH para trabalhar cultura corporativa (no Brasil acredito que as empresas dão muito mais cenouras para estimular – num paralelo com a teoria das cenouras e coelhos). Inexiste conversa sobre o que se faz fora do trabalho. O trabalho é o trabalho e a vida pessoal é outra coisa.
O nivelamento por cima das discussões técnicas (e isso eu amo) dá responsabilidade e também peso a uma opinião sua. Não existe muito “eu e meu time” ou “o time”, essa coisa do coletivo. Muitas vezes em uma discussão o posicionamento é “baseado na minha experiência, eu não concordo e não prosseguirei”, e isso não soa arrogante ou é mal recebido.
Uma melhoria, ah, sou brasileiro e um pouco mais de sorrisos e interação não faria mal a ninguém 🙂
P – Sua experiência vai além das diferenças culturais entre empresas. Já passou por uma empresa 100% brasileira, por uma multinacional com filial no Brasil e por empresas fora do país. Portanto já viveu diferentes níveis de integração entre o departamento de Marketing e os laboratórios de P&D. Qual a medida ideal dessa interação? Até que ponto o Marketing pode dar a direção de um projeto e até que ponto a equipe deve ter liberdade de criar? Qual o fórum ideal para que essas conversas aconteçam?
R – Eu acredito que o foco deve ser o consumidor. Ambas as áreas interagem com consumidores de formas diferentes. Acredito nos dados dessas interações (pesquisas) mais do que opiniões pessoais, exceto (lógico) consultores notórios em mercados específicos.
Conflito sempre tem e é construtivo muitas vezes. Para mim, o melhor time de marketing é aquele que me coloca em imersão no universo do consumidor com dados relevantes e validados e que depois verifica a entrega da mesma forma. Um processo decisório claro (governança de portfólio) ajuda muito também, principalmente em projetos de alta visibilidade para a companhia com muita gente colocando o dedo.
Eu sou um defensor de reuniões de time, e acredito que todas as áreas funcionais juntas é o melhor fórum para interações. Já tive experiência de ter reuniões de time semanais e até bimestrais – o tempo não prejudica quando o time é coeso e está claro para todos em que mercado estamos colocando os pés, quem é o consumidor.
Um último ponto, e acontece sempre, são mudanças fora do escopo inicial. É necessário um processo claro de change request. Muitos conflitos nascem aqui. Como formulador posso perder todo meu trabalho de anos numa mudança de rota do projeto. Muitos colegas brigam muito nessas horas, eu costumo dizer: me mostra com dados o porque você acredita que a mudança é relevante para o consumidor e para o mercado, qual é a estratégia por trás dessa mudança – se você me convencer vou ser o primeiro a comprar e fazer acontecer, criar caminhos para diminuir o impacto e manter a entrega dentro do prazo. Perder um ano não tem problema se a entrega for melhor, comprovadamente melhor. O que tira do sério qualquer formulador, e isso não acontece com tanta frequência por aqui, é o “achismo” ou aquele lack de competência para determinar essas coisas, e então o conflito é inevitável.
P – Qual é a importância de um bom briefing passado do Marketing para o P&D? Quais informações vocês precisam e quais podem ser construídas em conjunto?
R – É super relevante. As informações podem ser detalhadas (pantone de cor, direcionador de textura com benchmarks e atributos objetivos) , isso facilita mas é pequeno. O mais relevante é explicar o que se pretende com aquele projeto, estratégia de lançamento, produção e comercial, visão de ciclo de vida do produto, quem é o consumidor, o que ele está acostumado a usar, como ele se relaciona com as marcas, o que é primordial no produto e o que é nice to have, como serão as avaliações das fórmulas e o check de protótipos ao longo do desenvolvimento. Também como será o cronograma de projeto. Acreditem, sempre tem muita coisa que pode ser feita que agregue valor ao produto mesmo num curto período, mas muitas vezes políticas internas e processos impedem isso. Por isso ter essa visão no começo auxilia meu trabalho para a estratégia técnica de formulação.
P – Por fim, você indica alguma palestra, livro, podcast, case específico sobre a Indústria Cosmética?
R – Meu sonho é ter um podcast, um dia ainda gravo um para falar sobre o técnico ☺. Amo o canal Nunca vi um cientista, às vezes eles abordam cosméticos e claims
Eu me atualizo em congressos, exemplo IFSCC (Federação Internacional das Sociedades Cosméticas), o summit Bianual Global de Proteção Solar (nossa meca! As reuniões são incríveis e participo como delegado), tem o In Cosmetics Global na Europa (ou as locais LATAM, Asia, etc.) e com meu network (meu maior tesouro) de fornecedores, consultores e academia. Eu assino o mailing da Cosmetic Design, Cosmetic and Toiletries e Mintel, esse último taylormade para meus projetos, com pré filtros setados para ter foco, ajuda muito. Sigo muitas páginas de empresas no Instagram e no Wechat (China). No Brasil participava das reuniões com consultores de loja (do Boticário) e conversava com muita gente. Quando estou viajando, sempre estou nas farmácias, duty free e lojas de cosméticos, das mais locais possíveis até as redes internacionais – vendo, testando, cheirando, provando – isso enriquece. Quem tá comigo já sabe que é hora de ir para um restaurante me esperar, porque minha Disney é o varejo e seus universos.
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